segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Entendendo melhor à liturgia - 5ª parte






4 -  Tópicos doutrinais sobre a natureza da liturgia








Tomamos como ponto de partidas um texto fundamental do Sacrosanctum Concilium, na qual encontramos uma definição-descrição da liturgia: “A liturgia é tida como o exercício do múnus sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do homem; e é exercido o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros” (n.7).
Este conceito de liturgia deve ser interpretado no contexto doutrinal mais amplo da mesma constituição conciliar e completado com a contribuição de outros documentos do Vaticano II, principalmente com a doutrina da Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium. Sem pretender oferecer aqui uma descrição completa e detalhada do mistério litúrgico, indicamos aqui algumas das suas dimensões doutrinais que o Sacrosanctum Concilium põe em destaque.
a) Liturgia e economia sacramental da salvação Orígenes (+ 253) organizou a visão do cristianismo em torno da noção central de mysterion. Para o alexandrino, “mistério” é uma realidade divina mediata, isto é, manifestada e comunicada através de sinais visíveis. O mistério primordial é Cristo, pois nele a humanidade é sinal  que manifesta e comunica a realidade divina. Como procedente do mistério de Cristo, temos o mistério da Escritura, encarnação sui generis do Verbo. Do mistério de Cristo deriva em seguida o mistério da Igreja, sinal e instrumento de salvação, e o mistério cultual que exprime de maneira privilegiada a atividade salvífica de Cristo na sua Igreja.
Nos sécs. IV-V o termo “mistério” indica, na Igreja grega, toda a atividade litúrgica da Igreja: os ritos propriamente sacramentais (Batismo, Eucaristia, etc.) e os demais ritos. A Igreja latina, ao invés, exprime a mesma convicção, empregando antes o termo grego mysterion, em seguida traduzido por sacramentum. Os mesmos Padres latinos usam os dois termos como sinônimos e os aplicam às mesmas realidades: Cristo, Escritura, Igreja, ritos sacramentais e cultuais em geral. Do séc. XII em diante, a qualificação de “sacramento” foi atribuída somente aos sete grandes sinais sacramentais.
Todos sabem que a Teologia, já nos anos anteriores ao Vaticano II, retomou novamente a grandiosa visão dos Padres da Igreja. Os sacramentos propriamente ditos são considerados como formas destacadas de mais vasta sacramentalidade da Igreja, que se exprime através deformas e graus diferentes. O Vaticano II assumiu este conceito sacramental e o estabeleceu como fundamento das constituições Sacrosanctum Concilium e Lumen gentium. “Do costado de Cristo morto na cruz brotou o admirável sacramento de toda a Igreja” (cf. SC n.5; SC n.26; LG nn. 9, 48, 59, etc.). Cristo instituiu a Igreja à imagem da encarnação, de modo que fosse humana e divina e que nela se completasse a salvação dos crentes, principalmente por meio dos sacramentos, que não devem ser separados da estrutura global da liturgia, da qual são o núcleo e o centro. Os gestos, as palavras, os objetos, os elementos, as pessoas, os tempos e os lugares que entram na ação litúrgica estão ligados à sacramentalidade da Igreja.
b) Liturgia e mistério pascal
O enquadramento da liturgia na economia sacramental da salvação tem, entre outras conseqüências, a de atribuir um destaque marcante ao mistério pascal. O culto cristão é o culto que Cristo começou na sua vida mortal, e que conduziu à realização definitiva com sua morte e ressurreição e que prolonga na Igreja como sua cabeça celeste. Tudo isso é exposto pelO Sacrosanctum Concilium nn. 5-6.
O Sacrosanctum Concilium n.5, ao descrever as diferentes épocas da revelação do desígnio salvífico de Deus na história, conclui reconhecendo em Cristo a atuação concreta deste desígnio. A redenção-salvação dos homens é esboçada no Antigo Testamento, começa na encarnação do Filho de Deus e se cumpre no momento da morte-ressurreição-ascensão de Cristo.
A encarnação é um evento progressivo. Não consiste somente no fato do Natal. Começa no seio da Virgem, continua durante toda a vida terrena de Jesus, na sua morte na cruz e culmina na ressurreição. Portanto, o eixo e o centro de todo o plano criador e salvador do Pai é o Cristo glorioso.
Ao sublinhar as sucessivas fases do plano salvífico de Deus, o Sacrosanctum Concilium afirma que ela foram realizadas em Cristo e por Cristo “especialmente por meio do mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição da morte e Ascensão gloriosa” (n.5). Com esta afirmação a Páscoa de Cristo, ou seja, a realidade da redenção operada por Cristo (reconciliação do homem com Deus e perfeita glorificação de Deus), é colocada não só no centro da história da salvação, mas também no centro da liturgia da Igreja.
De fato, a história da salvação, que se concretizou no mistério de Cristo, encontra o seu cumprimento, a sua realização e o seu centro na Páscoa, não somente como momento histórico, mas também como acontecimento ritual daquele fato histórico.
O Sacrosanctum Concilium, justamente ao falar da atuação do mistério pascal de Cristo, através dos sinais rituais, introduz o discurso sobre liturgia, que é considerada fundamentalmente como atuação da salvação realizada por Cristo no mistério de sua Páscoa (n.6).
c) Liturgia e Igreja
A liturgia é “obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja”. O movimento litúrgico clássico já definira a liturgia como “Culto da Igreja”. Também nos documentos mais respeitáveis do magistério que precederam de perto o Vaticano II, como se pode verificar nas encíclicas de Pio XII Mystici Corporis e Mediator Dei, liturgia e eclesiologia são inseparáveis. A eclesiologia destes documentos, porém, é sobretudo a da sociedade perfeita, embora na sua versão mais refinada.
A eclesiologia do Vaticano II, ao invés, é sobretudo eclesiologia de comunhão, que coloca em primeiro plano a natureza da Igreja como comunhão ontológica, sacramental e sobrenatural de vida divina.
Tudo isso aparece claramente no Sacrosanctum Concilium, mas sobretudo nos documentos conciliares posteriores particularmente na Lumen Gentium, Presbyterorum Ordinis e Gaudium et Spes.No Sacrosanctum Concilium afirma-se: “As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é o ‘sacramento da unidade’, isto é, o povo santo unido e ordenado sob a direção dos bispos”(n.26). A relação que aqui se estabelece entre liturgia e Igreja pretende superar a relação, até então dominante, entre liturgia e Igreja hierárquica. A Igreja, povo de Deus na sua totalidade, é o lugar em que Cristo exerce o seu sacerdócio, ou seja, o instrumento eficaz da união íntima do homem com Deus.
d) A Liturgia e a escatologia
A ação de Cristo na Igreja é orientada para a plenitude escatológica. No fim da sucinta exposição teológica sobre a natureza da liturgia, o Sacrosanctum Concilium afirma: “Na liturgia terrena, antegozando-a, participamos da liturgia celeste, que se celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual, peregrinos, nos encaminhamos. Lá Cristo está sentado à direita de Deus... e suspiramos pelo Salvador. Nosso Senhor Jesus Cristo, até que ele, nossa vida, se manifeste e nós apareçamos com ele na glória”(n.8).
Neste texto adquire primazia a contemporaneidade do eterno no presente e da comunhão entre a Igreja peregrina e a celeste, sempre porém na dimensão de espera; a ligação é processada pela presença do Senhor: Ele “está sempre presente na sua Igreja e, de maneira especial, nas ações litúrgicas”(SC n.7), mas ainda virá na glória.
No capítulo sobre “a índole escatológica da Igreja peregrina e sua união com a Igreja celeste”, a Lumen Gentium se enriquece abundantemente nas fontes da revelação e na vida da Igreja como se manifesta na liturgia. Aqui também se acentua com destaque vigoroso o aspecto de comunhão e portanto sobre a dimensão do começo, ainda nesta terra, da vida futura, como primícia e garantia e sobre a participação, na comunhão dos santos, na vida da Igreja celeste. O lugar desta participação e comunhão é sempre a liturgia, especialmente a eucarística.

Obs: (Este texto faz parte de um curso litúrgico. Em breve publicaremos a sequência.)  

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