4 - Tópicos
doutrinais sobre a natureza da liturgia
Tomamos como ponto de
partidas um texto fundamental do Sacrosanctum Concilium, na qual encontramos
uma definição-descrição da liturgia: “A liturgia é tida como o exercício do múnus
sacerdotal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada
e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do homem; e é exercido
o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros” (n.7).
Este conceito de
liturgia deve ser interpretado no contexto doutrinal mais amplo da mesma constituição
conciliar e completado com a contribuição de outros documentos do Vaticano II,
principalmente com a doutrina da Constituição sobre a Igreja Lumen Gentium. Sem
pretender oferecer aqui uma descrição completa e detalhada do mistério
litúrgico, indicamos aqui algumas das suas dimensões doutrinais que o
Sacrosanctum Concilium põe em destaque.
a) Liturgia e economia sacramental da salvação Orígenes
(+ 253) organizou a visão do cristianismo em torno da noção central de mysterion.
Para o alexandrino, “mistério” é uma realidade divina mediata, isto é,
manifestada e comunicada através de sinais visíveis. O mistério primordial é Cristo,
pois nele a humanidade é sinal que
manifesta e comunica a realidade divina. Como procedente do mistério de Cristo,
temos o mistério da Escritura, encarnação sui generis do Verbo. Do mistério de
Cristo deriva em seguida o mistério da Igreja, sinal e instrumento de salvação,
e o mistério cultual que exprime de maneira privilegiada a atividade salvífica
de Cristo na sua Igreja.
Nos sécs. IV-V o termo
“mistério” indica, na Igreja grega, toda a atividade litúrgica da Igreja: os
ritos propriamente sacramentais (Batismo, Eucaristia, etc.) e os demais ritos.
A Igreja latina, ao invés, exprime a mesma convicção, empregando antes o termo
grego mysterion, em seguida traduzido por sacramentum. Os mesmos Padres latinos
usam os dois termos como sinônimos e os aplicam às mesmas realidades: Cristo,
Escritura, Igreja, ritos sacramentais e cultuais em geral. Do séc. XII em
diante, a qualificação de “sacramento” foi atribuída somente aos sete grandes
sinais sacramentais.
Todos sabem que a
Teologia, já nos anos anteriores ao Vaticano II, retomou novamente a grandiosa
visão dos Padres da Igreja. Os sacramentos propriamente ditos são considerados como
formas destacadas de mais vasta sacramentalidade da Igreja, que se exprime
através deformas e graus diferentes. O Vaticano II assumiu este conceito sacramental
e o estabeleceu como fundamento das constituições Sacrosanctum Concilium e
Lumen gentium. “Do costado de Cristo morto na cruz brotou o admirável
sacramento de toda a Igreja” (cf. SC n.5; SC n.26; LG nn. 9, 48, 59, etc.).
Cristo instituiu a Igreja à imagem da encarnação, de modo que fosse humana e divina
e que nela se completasse a salvação dos crentes, principalmente por meio dos sacramentos,
que não devem ser separados da estrutura global da liturgia, da qual são o
núcleo e o centro. Os gestos, as palavras, os objetos, os elementos, as
pessoas, os tempos e os lugares que entram na ação litúrgica estão ligados à
sacramentalidade da Igreja.
b) Liturgia e mistério pascal
O enquadramento da
liturgia na economia sacramental da salvação tem, entre outras conseqüências, a
de atribuir um destaque marcante ao mistério pascal. O culto cristão é o culto que
Cristo começou na sua vida mortal, e que conduziu à realização definitiva com
sua morte e ressurreição e que prolonga na Igreja como sua cabeça celeste. Tudo
isso é exposto pelO Sacrosanctum Concilium nn. 5-6.
O Sacrosanctum
Concilium n.5, ao descrever as diferentes épocas da revelação do desígnio
salvífico de Deus na história, conclui reconhecendo em Cristo a atuação
concreta deste desígnio. A redenção-salvação dos homens é esboçada no Antigo
Testamento, começa na encarnação do Filho de Deus e se cumpre no momento da
morte-ressurreição-ascensão de Cristo.
A encarnação é um
evento progressivo. Não consiste somente no fato do Natal. Começa no seio da
Virgem, continua durante toda a vida terrena de Jesus, na sua morte na cruz e
culmina na ressurreição. Portanto, o eixo e o centro de todo o plano criador e
salvador do Pai é o Cristo glorioso.
Ao sublinhar as
sucessivas fases do plano salvífico de Deus, o Sacrosanctum Concilium afirma
que ela foram realizadas em Cristo e por Cristo “especialmente por meio do
mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição da morte e Ascensão
gloriosa” (n.5). Com esta afirmação a Páscoa de Cristo, ou seja, a realidade da
redenção operada por Cristo (reconciliação do homem com Deus e perfeita
glorificação de Deus), é colocada não só no centro da história da salvação, mas
também no centro da liturgia da Igreja.
De fato, a história da
salvação, que se concretizou no mistério de Cristo, encontra o seu cumprimento,
a sua realização e o seu centro na Páscoa, não somente como momento histórico, mas
também como acontecimento ritual daquele fato histórico.
O Sacrosanctum
Concilium, justamente ao falar da atuação do mistério pascal de Cristo, através
dos sinais rituais, introduz o discurso sobre liturgia, que é considerada
fundamentalmente como atuação da salvação realizada por Cristo no mistério de
sua Páscoa (n.6).
c) Liturgia e Igreja
A liturgia é “obra de
Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja”. O movimento litúrgico clássico
já definira a liturgia como “Culto da Igreja”. Também nos documentos mais respeitáveis
do magistério que precederam de perto o Vaticano II, como se pode verificar nas
encíclicas de Pio XII Mystici Corporis e Mediator Dei, liturgia e eclesiologia
são inseparáveis. A eclesiologia destes documentos, porém, é sobretudo a da sociedade
perfeita, embora na sua versão mais refinada.
A eclesiologia do
Vaticano II, ao invés, é sobretudo eclesiologia de comunhão, que coloca em
primeiro plano a natureza da Igreja como comunhão ontológica, sacramental e sobrenatural
de vida divina.
Tudo isso aparece
claramente no Sacrosanctum Concilium, mas sobretudo nos documentos conciliares
posteriores particularmente na Lumen Gentium, Presbyterorum Ordinis e Gaudium
et Spes.No Sacrosanctum Concilium afirma-se: “As ações litúrgicas não são ações
privadas, mas celebrações da Igreja, que é o ‘sacramento da unidade’, isto é, o
povo santo unido e ordenado sob a direção dos bispos”(n.26). A relação que aqui
se estabelece entre liturgia e Igreja pretende superar a relação, até então
dominante, entre liturgia e Igreja hierárquica. A Igreja, povo de Deus na sua
totalidade, é o lugar em que Cristo exerce o seu sacerdócio, ou seja, o instrumento
eficaz da união íntima do homem com Deus.
d) A Liturgia e a escatologia
A ação de Cristo na
Igreja é orientada para a plenitude escatológica. No fim da sucinta exposição
teológica sobre a natureza da liturgia, o Sacrosanctum Concilium afirma: “Na
liturgia terrena, antegozando-a, participamos da liturgia celeste, que se
celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual, peregrinos, nos
encaminhamos. Lá Cristo está sentado à direita de Deus... e suspiramos pelo
Salvador. Nosso Senhor Jesus Cristo, até que ele, nossa vida, se manifeste e nós
apareçamos com ele na glória”(n.8).
Neste texto adquire
primazia a contemporaneidade do eterno no presente e da comunhão entre a Igreja
peregrina e a celeste, sempre porém na dimensão de espera; a ligação é processada
pela presença do Senhor: Ele “está sempre presente na sua Igreja e, de maneira especial,
nas ações litúrgicas”(SC n.7), mas ainda virá na glória.
No capítulo sobre “a
índole escatológica da Igreja peregrina e sua união com a Igreja celeste”, a Lumen
Gentium se enriquece abundantemente nas fontes da revelação e na vida da Igreja
como se manifesta na liturgia. Aqui também se acentua com destaque vigoroso o
aspecto de comunhão e portanto sobre a dimensão do começo, ainda nesta terra,
da vida futura, como primícia e garantia e sobre a participação, na comunhão
dos santos, na vida da Igreja celeste. O lugar desta participação e comunhão é
sempre a liturgia, especialmente a eucarística.
Obs: (Este texto faz parte de um curso litúrgico. Em breve publicaremos a sequência.)